Francesismo

 QUEIROZ 1912 - Vários trechos retirados

  • Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo; Portugal é um país traduzido do francês em calão
  • Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor da literatura de cordel, as histórias que ele me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares. Havia aí certamente grandes lições de valor, de lealdade, de heroísmo: mas eram virtudes cavalheirescas que se provavam todas nos montes da Provença ou de Navarra. De cavaleiros portugueses, que dessem cutiladas nos mouros, nunca me contaram história alguma à lareira. Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais. As naus afundavam-se, os gajeiros gritavam terra, mas era tudo em frios mares da Bretanha. De navegadores portugueses, em galeões portugueses, não me contaram jamais história alguma à lareira. Depois ensinaram-me a ler: e o Estado, que certamente tinha interesse em que eu soubesse ler, e que, por meio das suas Repartições Públicas, estudara prudentemente o livro que melhor me convinha, como lição moral, e como lição patriótica, meteu-me nas mãos um volume traduzido do francês e chamado Simão de Nântua. Eram as aventuras de um justo: abundavam lá os exemplos de modéstia, de diligência, de caridade, de pudor; mas todas estas virtudes, suaves e íntimas, se exibiam longe, em Dijon, na Alsácia, e nas estalagens da Picardia. De sorte que, para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos, nessa França de onde tudo que é amável vinha, de onde eu mesmo viera, como outras crianças, num açafate de alfazema e cravo. Depois, comecei a subir o duro calvário dos Preparatórios: e desde logo, a coisa importante para o Estado foi que eu soubesse bem francês. 
  • E outros decerto faziam lindas rendas, eles ou os Editores, porque, apenas entrei na Universidade, fui abrindo o meu rego de bacharel através de livros franceses. Direito natural, Direito público, Direito internacional, todos os Direitos, ou em compêndios ou em expositores, eram franceses, ou compilados abertamente do francês, ou secretamente surripiados do francês. E, sobre a mesa de pinho azul dos meus companheiros de casa, só se apinhavam livros franceses de Matemática, de Cirurgia, de Física, de Química, de Teologia, de Zoologia, de Botânica. Tudo francês! Algumas lições eram dadas em francês, por lentes preclaros, carregados de condecorações, que pronunciavam il faut – ile faúte. Aquele corpo docente nunca tivera bastante actividade intelectual para fazer os seus compêndios. E todavia Coimbra fervilhava de lentes, que decerto tinham ócios.
  • Apenas mostrar, tipicamente, como eu, e toda a minha geração (exceptuando espíritos superiores, como Antero de Quental ou Oliveira Martins) nos tínhamos tornado fatalmente franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava e que, por toda a parte, desde as criações do Estado até ao gosto dos indivíduos, rompera com a tradição nacional, despindo-se de todo o traje português, para se cobrir – pensando, legislando, escrevendo, ensinando, vivendo, cozinhando – de trapos vindos da França!
  • Esta geração cresceu, entrou na política, nos negócios, nas letras, e por toda a parte levou o seu francesismo de educação, espalhou-o nos livros, nas leis, nas indústrias, nos costumes, e tornou este velho Portugal de D. João VI uma cópia da França, malfeita e grosseira. De sorte que, quando eu, lentamente, fui emergindo dos farrapos franceses em que essa educação me embrulhara, e tive consciência do postiço estrangeiro da nossa civilização, eu pude dizer que Portugal era um país traduzido do francês – no princípio em vernáculo, agora em calão.
  • O que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é. Se um grupo amanhã decidir que Portugal seja turco – através do país inteiro todos os chapéus altos, todos os chapéus desabados, todos os cocos, todos os barretes de varino, tenderão lentamente mais ou menos a tomar a forma de turbante. Por ora, todavia, tudo é francês.
  • Lisboa vê que nas vitrinas dos livreiros só há livros franceses; e quando se sobe às casas, se penetra na sociedade, só lá se descobrem (desde que a conversação se eleva acima das coisas locais), leituras francesas, admirações francesas, frases francesas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Evolucionista Voador - Costa

Seminários e apresentações